
Minha mãe não entendeu nada quando viu que tinha um furo enorme e
perfeito no armário. Era a brincadeira da semana: eu ficava entre as
blusas de lã, escondida do pirata, e meu pai ficava do outro lado do
armário, entre as calças, também escondido do pirata. O furo era pra
permitir comunicação. Como escaparíamos daquela imensa caixa que
naufragava em alto-mar? Depois meu pai era o Carlinhos, aluno respondão
que nunca fazia a lição de casa e eu a professora que sempre dava mais
uma chance. Se ele errasse alguma palavra, o castigo era me levar de
carro, porque eu gostava de ouvir as músicas em movimento, e me comprar o
maior número possível de pulseiras mágicas com purpurina dentro. Eu
adorava colar estrelas no teto do quarto. Aquelas que brilhavam à noite.
E então montávamos um verdadeiro acampamento com lençóis, vassouras,
lanternas e eu tinha certeza que se colocasse meu pé pra fora sentiria
aquela graminha com sereno. Antes de dormir, meu pai não lia livrinhos
prontos, mas me fazia inventar histórias.Tem pai que ensina o filho a
não ter medo das coisas e talvez essa seja uma pequena mágoa que guardo
da minha família. Eu fui criada pra ter medo de tudo: de coxinha de
padaria à viagens solitárias pela Europa. Não me deixavam brincar muito
na rua, nadar sozinha no mar, comer besteiras na cantina da escola. O
resultado disso é que até hoje passo um pouco de vergonha quando viajo
com amigos e faço análise há anos pra aprender a ficar menos tensa com a
vida lá fora.Em compensação, tenho uma coragem absurda e uma
curiosidade profunda a respeito da minha vida de dentro. E me pergunto:
quantos pais ensinam isso a seus filhos? Tive sorte. Hoje, com trinta
anos de idade, eu sou escritora, profissão que não troco por nenhuma e
que me dá um tesão enorme em viver. E devo isso ao meu pai. Ele não me
ensinou a comer pastel de feira e nem a dar um mortal na piscina. Talvez
porque ele próprio tivesse medo dessas coisas, talvez porque quando um
filho é único, você redobra os cuidados. Mas ele me ensinou a inventar
um mundo rico, enorme e possível dentro da minha cabeça. Me ensinou a
viver com coragem dentro de mim, a ser amiga e ouvinte dos neurônios,
fígado, coração e entranhas. Tenho certeza que comecei da maneira mais
difícil. É mais corajoso quem não tem medo de voar pelo mundo ou quem
aguenta ficar dentro de si?Me sinto boba perto dos meus amigos que
contam cicatrizes de esportes, meu pai sempre me disse pra tomar cuidado
na aula de educação física. Mas me sinto um gênio quando vejo tanta
gente que perde um dia inteiro pra escrever um simples e-mail
sentimental ou não sabe o que dizer numa conversa mais íntima. E essas
pessoas que fazem curso de escritor? Pra que serve um curso de
escritor!? Quem é que vai te ensinar a ter essa delicadeza de sentir?
Quem é que vai te dar ferramentas pra olhar pras coisas o tempo todo
como se elas fossem encantadas e não simplesmente coisas? Durante muito
tempo eu respondi “escritor se nasce, não se torna”. Mas descobri que
foi o príncipe azul, que na verdade era meu pai, que me ensinou a não
ter medo de atravessar o rio enorme, profundo, gelado e escuro, da
história que inventamos. Dentro da barraca que não é barraca, é lençol
preso no teto com fita crepe. Ele me deu a capacidade de sonhar, o resto
do mundo agora é comigo.
Tati Bernardi