quinta-feira, 24 de maio de 2012

“Uma boca que há tempos deixou de mastigar e dentes que nunca existiram para travar-me a língua. No lugar dos cintilantes olhos, dois buracos negros e ocos que só abrigam abismos e cadáveres. Pudera eu ter corpo e alma de quem é feito de carne. De quase gente passei para ser não-humano. Mas ainda sei ser, o que me falta é ser eu mesmo. Tornei-me as roupas que visto, as palavras que calo, as ideias que reprimo, os cheiros que guardo, os amores que mato. Tenho tudo, exceto um nome. O espelho me presenteia com demônios, vagabundos e barões de café; todos em uma única e triste imagem desfocada. O estômago já escrevo que engoliu minhas borboletas e acidez. Os braços encaro por tentáculos com ventosas falhas feitas de mal humor, desprezo e azedume. Tão escorregadios que não foram capazes nem de agarrar a própria sombra. As unhas abandonaram-me quando arranhei as tuas escadas querendo que os degraus da tua ausência se desfizessem em meus dedos ensanguentados. Ah, e os dedos… Dez pontas de cigarro importado e três linhas de um destino torto, translúcido e riscado. Os cabelos oleosos envenenados pelo veneno de Medusa não passam de almofada ou flores de túmulo para um crânio esfarelado. O nariz aspira poeira, solidão e veneno adocicado. Os lábios fazem as vezes de gaiola enferrujada para um pássaro que viu sua última vida voar, silenciando a prosa, o canto, o sentimento e a poesia. Um tronco mirrado equilibrando-se em duas bolas de ferro espinhentas. Emoldurei a tristeza em um quadro espelhado e pus a chorar e fazê-la dormir. Antes eu fosse um estúpido vadio, maltrapilho, andarilho, ateu, plebeu, padre, compadre, poeta, Dante ou amante. Antes eu fosse linha, pois linha ainda é real. Braços e pernas para nada me servem, quando tudo é metáfora. Mente e mentira não me assinaram tratados de eficiência. Sofro com riquezas, com luxos e mordomias, como um escravo de casa de engenho. Mas não sofro como gente, porque gente eu já não sei ser. Virei estrangeiro em meu próprio corpo e louvo o hino do inimigo de infância tão amado e obscuro. Desconheço-me e idolatro-me, como um alienado que assiste ao enterro de um indigente e pensa que é presidente. O juízo mordiscou a saudade. Maldita hora em que fitei-me no espelho quebrado. Sinto falta de ser homem ou menino, de ter boca e coração abertos. De amar eu já não sinto falta, quando tudo o que falta é tudo o que se tem.”
Cinzentos.

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